sábado, 31 de janeiro de 2009

baptismo



vi a minha face no espelho de água
reflexo de mil máscaras
                                  sobrepostas no tempo
dos ombros foram caindo
                                  uma a uma
capas que se perderam
em caminhos de fragas

na procura do corpo inicial
do rosto puro
primevo
despi-me de mim
e da concha da tua mão
bebi a água do meu baptismo




foto de Marcin Klepacki

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

e dele as folhas...


não é este o tempo de tentar ver para além da árvore. concentro-me no verde que tapa o horizonte. na gota de chuva que pende da folha. não é este o tempo de voar para lá da árvore. as asas estão presas à terra por fios leves, leves… pensei que podia quebrá-los. têm a firmeza do pensamento. só se quebrarão quando se dissolverem no húmus antigo. dele brotará um novo tronco de mim. e dele as folhas. e dele a libertação das asas. para lá da árvore.


foto de Darius Klimczack


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[Agradeço a amizade e a gentileza da Hercília Fernandes. Este prémio é para todos os amigos que me visitam. Obrigada.]

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

sabes?



partirei. devagar. sabes que será devagar. a bagagem ficará solta na água. levarei comigo apenas suor e sémen. pele minha que nenhum rio lava. ficarão lembranças fluidas nas pedras. lentas. até que, não me sentindo no tacto, deixarás de ver. será um dia. sem nada de diferente. um destes dias. assumo que me dissolverei na fronteira do invisível. partirei. devagar. sabes?


foto de Marek Waskiel

sábado, 24 de janeiro de 2009

por trás da bruma



algures por trás da bruma
dos prédios esventrados
das gentes que a alma não sente

perdi-te
ou perdi de ti o saber
                          o sabor
não encontro o caminho do teu ser
e nem o dos teus olhos
via aberta e estrada principal

perdi-me
por entre escombros
um mar de lixo à deriva
sentimentos quebrados
                          esfarrapados sentidos

nos becos além da bruma
perdi-me de ti.


foto de Claudio Naboni

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

espelhos do mar



não há unidade nos espelhos do mar
onde as sombras são longas
como dias

desdobro-me em vagos sonhos por abrir
procuro no colo das ondas
a tua face
                          minha cortante amarra
                          vértice de alguma estrela caída


foto de donnie mackay

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

chocolate e baunilha


amanhã é uma palavra redonda
com sabor a chocolate
desfaz-se na boca escorrendo
                              expectativas de prazer
                                                            até à explosão na língua


bebo-te a palavra em beijos de baunilha
antecipo a fome redonda de amanhã



foto de Zbyszek Filipiak

domingo, 18 de janeiro de 2009

o gato




no sofá às riscas está o gato
plácido e controverso
no verde oblíquo dos olhos
esconde a porta de um mundo absurdo
de amáveis gigantes e pequenas criaturas
improváveis

um dia serei gato num sofá às riscas
olhando por uma pequena fresta
as dúvidas que escorrem da mão que me afaga


foto de Piotr Rymer


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[Obrigada, Arabica, e perdoem-me se não consigo distinguir entre todos os que me honram por aqui passarem ]

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

assim breve


queres que me diga
pelo punho de uma caneta verde
puxando lustro às palavras
com o óleo que escorre dos olhos
quando assim breve te dás

não nas minhas mãos que se contorcem
                                               no colo das palavras
não na minha boca onde o mel azeda
                                               por excesso de doçura
não em mim enquanto nada sou
                                               de ti.


Foto de Marianne le Carrour

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009




silêncio seria fácil. se não me rasgassem os pés os longos caminhos de pedras e sangue. farrapos de vida e almas estranguladas no chão das árvores milenárias. punhais secos nos olhos das mulheres. feridas abertas na pele dos sorrisos. e a luz de mil velas acesas pelos (sonhos) mortos. clamores e caladas orações. a que deus(es)? a que distraídos deuses?



só a luz magoada nos olhos da criança. mas luz, ainda. pálida. pequena chama voando no vento...


fotos da net

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

o decifrar das sombras



quando acordo vejo-me
nos ilusórios espelhos de todas as paredes.
serei uma das sombras esfumadas
na luz onírica da madrugada?
com estranhos orifícios de ver sons
tacteio tudo o que dizem os reflexos
sem cor.
decifro-me nos cantos escondidos
e estranho-te em cada raio de luz.
devagar a crua iluminação do dia
compõe partes de mim quebradas
espalhadas no lençol
respiro a realidade oculta
despeço(me) (d)a tua ausência.


Foto de Rafal Bednarz

sábado, 10 de janeiro de 2009

la valse




dança comigo a valsa das recordações. à mille temps? devagar que o tempo hoje sobra. à trois temps , para começar. rodopia, vá… havia o tempo em que só tínhamos o amor. tínhamos tudo sem o sabermos. esse seria o tempo de éclater de joie. insatisfeitos, não previmos os tempos que viriam. vertigem. aceleremos. à cent temps, agora. rodopia, rodopia. a distância a impor-se dia a dia. lembras-te? o tempo de percorrer as ruas vierges et froides, froides et nues. rodopia mais um pouco. deixa o ritmo aumentar. A quantos tempos já vamos? não esquecíamos rien du tout. os regressos. os inevitáveis e melancólicos regressos. será que a distância se anulava? não respondas. rodopia, só. quero pensar que somos vieux amants, a viver esta terna guerra. mais n’est-ce pas le pire piége que vivre en paix pour des amants? rodopia que quero atingir os mille temps. quero a vertigem para te dizer o necessário. o que nunca te disse. a música está alta. tu estás tonto. não ouvirás. ne me quitte pas!
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De Brel:
La valse à mille temps
Quando on n’a que l’amour
Je ne sais pas
On n’oublie rien
La chanson des vieux amants
Ne me quitte pas


Foto de Andreea Anghel

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

rescaldo (1)



deixa que te diga
já viajei pela chama da vela

lambeu-me a pele
o corpo abrasado
em cores amarelas azuis

em ondas escaldantes de hidrogénio e vapor de água
me espraiei eufórica
no calor final do carbono queimado
gritei mil vezes

da viagem sobrou a alma em brasa
rescaldo fumegante da combustão do corpo

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

aceitação



"As aves riscam o céu na satisfação do fim.
Conta-se de algumas que cantam ao morrer.
Mas mesmo que não cantem, o animal cumpre-se na aceitação."

Vergílio Ferreira, in Para Sempre



será então assim o voo final
o último cântico
abandono da lama dos telhados
que tapam fundas gavetas
onde se escondem
                        supérfluas paixões
mesquinhas tramas esburacadas
enredos que atam o corpo
                        ateiam a vida

elevam-se as asas
largando o lastro           
peso que arrasta                     
arrasa...                                                


seja assim: aceitação.


Foto de Patrizio Battaglia

domingo, 4 de janeiro de 2009

ausente da memória




"Sem memória esvai-se o presente
que simultaneamente já é passado morto"

José Cardoso Pires, in De Profundis, Valsa Lenta



Não me lembro
se me eras sangue entranhas
ou só enlevo
         adoçante de alguns dias

É certo que não me lembro
de entrar pelos olhos dentro do teu peito
e lá ficar
menina mulher
         criança de embalar

Talvez porque não me eras sangue
deixei que te dissolvesses
no peso infinito do tempo

Hoje não te reconheço
enlevo, sangue, entranhas

estranho de mim
ausente da memória         



Foto de Stefano Orazzini

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

arroubos de Florbela




"Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa
De frio e de gelado, de pérfido e cruel,
Como um orvalho frio no tampo duma lousa
Como em doirada taça algum amargo fel"

Florbela Espanca, excerto de "Confissão"


"Estendo os braços meus! Clamo por ti ainda!"*

nos meus arroubos súbitos de Florbela
louca descontrolada
esbarro no aço das defesas do teu peito

"Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!"*

em silenciosos ecos
que me jorram da boca

                                                      [mas até o silêncio te fere a luz dos olhos]

endureço o sonho, a dor, a raiva
frustrações insensatas
de quem de amor se alimenta
e o come
                                                      até à perpétua (in)satisfação

"Demais, nem eu talvez, perceba se o amor
É este perseguir de raiva, de furor,
Com que te sigo assim como os rafeiros leais"**

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De Florbela:
*excertos de "Aonde?..."
**excerto de "Quem sabe?!..."


Foto de kalua k krynska

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

dilema




suave, suave, suave
o leve rumor da vida subjacente


deito-me sobre as palavras
perturbante verbo implantado
na (tua) pele
da (minha) rugosa casca
desdobram-se os sons sem eco
do que calo mas digo


talvez o grito do sangue
que pulsa
negação da morte inevitável

se disser a palavra fujo
               se a esquecer saio de mim

elevo-me e voo sobre o dilema
suave, suave
é o rumor da vida subjacente


foto de darkshape