domingo, 29 de março de 2009

sem limites


somos cada instante, cada momento deste tempo indistinto. somos nós, os outros que fazem um desvio na nossa direcção e até os que passam sem ver. os que os olhos seguem, esperando um reconhecimento nunca concreto. ficam connosco, hipóteses sem seguimento. parte de nós. não te disse um dia que guardamos o bom e o mau? até o que não classificamos e nos perturba. em nós essa mescla se caldeia e se transforma. a vida, sabes, não se esgota na nossa fronteira. nunca a saberemos, se não nos dermos para lá dos limites. de todos os limites.


foto de Diana Freire

quarta-feira, 25 de março de 2009

abismo

entre rectângulo e rectângulo existe um abismo
que espreito pela fenda consentida do papel
e onde me despenho na procura da palavra
sucinta e necessária
tensa trave de equilíbrio entre mim e o reflexo
que os dias projectam sobre a minha sombra

entre rectângulo e rectângulo reside a essência
da alma exposta ao sopro da vida


foto de AliceRouse

sábado, 21 de março de 2009

estes tempos




Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Sophia de Mello Breyner Andresen, excerto de "Data"



levanto os olhos para lá dos muros
que se erguem
em cada dia espero a luz na hora certa

mostras-me lama e sei que a razão
reside em ti
dizem-me os céus prenhes de agoiros

pois sejam os meus dedos a clara fúria
de mil rios
de ti não aprendo a vida sem esperança!


foto de Nathan Thomas Jones

terça-feira, 17 de março de 2009

não acaba hoje o mundo

não acaba hoje o mundo. nem em nenhum outro dia em que o meu mundo acabe. percebes o que te digo? a vida é finita. e infinitamente perene. para lá das tão importantes minudências. dos enfados, dos cansaços, dos desalentos. não somos originais. ninguém é original. sabes quantos já disseram as frases com que (te) me arrasas? as palavras com que (me) te destruo? e, no entanto, diferentes. todos e cada um. na diferença, a vida floresce. e continua. não, meu amor, não acaba hoje o mundo.


foto de fritz fabert

sexta-feira, 13 de março de 2009

noviços



somos folhas nascidas nas árvores
aos raios primeiros do sol
saboreamos no balanço do vento
o apelo profundo da terra
bebemos a doçura das manhãs
gloriosamente ébrios de luz
a vida penetra-nos mais uma vez
noviços que somos na arte de renascer


foto de B Berenika
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[Obrigada, Vicente]



[Obrigada, Tatiana. Os selos são para todos os que me dão o prazer e a alegria de me ler.]

domingo, 8 de março de 2009

no silêncio do útero


indizíveis, os mistérios nos olhos das mulheres. águas infindas na sua profundidade. trazem sombras espelhadas nas lágrimas que choraram. a luz mora no brilho do seu riso. porque os olhos das mulheres riem quando partilham mistérios. nunca todos, nunca. escondem-se segredos na sabedoria dos dias. das meninas. das velhas. de todas as que, no silêncio do útero, são promessa e vida. ou só lembrança que se desfaz em ternura.


foto de katarzyna Widmanska

terça-feira, 3 de março de 2009

das pontes sobre rios cinzentos


...mas se ainda queres falar de cidades
volto hoje aos recantos de outrora
colados na memória
aos mistérios de cada caminho
e das gentes que neles amaram
e viveram
e morreram
falo daqueles que teceram lendas
que te assombram as noites de néon
volto às pontes sobre rios cinzentos
às luzes antigas que nelas se acendem
talvez me encontres do lado de lá
se ainda quiseres falar de cidades…


foto de Tomasz Zubowski