quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

princípio e fim


que novas me dás das cidades
onde a luz se pôs de madrugada?
o que me dizes das horas pardas
em que nos perdemos
para lá do portal da distância?

digo-te em verdade que a luz entrará
quando tudo não for mais que a cinza
despojada de nós
que o sopro insano do vento transporta
onde seremos para sempre princípio e fim
ancorados na orla do tempo


foto de hakim talbi

sábado, 21 de fevereiro de 2009

cascata da memória


I sing what was lost and dread what was won,
I walk in a battle fought over again,
My king a lost king, and lost soldiers my men;
Feet to the Rising and Setting may run,
They always beat on the same small stone.


W.B.Yeats, "What was lost"


nem sempre o momento é o de hoje
quando me perco no pó colado ao corpo
em cada derrota
a alma guarda todos os segundos gerados
no toque da pele na pele
cada riso solto no eco de outra voz


encontro outras de mim na cascata da memória
que lava a poeira dos despojos
e faço a viagem de volta à nascente
à alegria primeira do puro cristal de água

Foto de Jukka Vuokko

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

rescaldo (2)


este é o campo calcinado pelas chamas que ateaste. debaixo duma lua vermelha. cor de sangue e terra antes de semeada. fértil. pronta a dar fruto. aberta em sulcos de desejo. não este chão queimado que criaste debaixo dos pés. procuro mãos como águas dos rios. líquido corpo penetrando a terra. penhor de esperança derramada no amanhecer.


foto de Donnie Mackay

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

violino



como percorrer estas linhas tensas
que se estendem entre as mãos minhas tuas?
cordas de um violino de notas quebradas
que busca o equilíbrio em longos silêncios

como fazer de todo o ruído sinfonia
e dos sons bálsamo sobre a pele gretada?
se em arco soltas os ais do meu corpo
rouco eco vibrando em cada precipício

como tocar esta fuga em solo
se o violino guarda a memória do som?


foto de Katarzyna Widmanska

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Desafio


“E veio-lhe então a ideia de que seria injuriar a mulher recusar esta oferenda, recusar esta terna atenção”

Milan Kundera, in "O livro dos amores risíveis”, Publicações Dom Quixote, pag. 161

porque o que te dou já era teu no início dos tempos. como uma dádiva de imortalidade. magma que tem que explodir e eternizar-se, sólido. a recusa é o arrancar das raízes, o destruir das origens. aceita o que te está destinado.


foto de Fritz Fabert

[resposta ao desafio do PAS[Ç]SOS com um pequeno acrescento meu. fica para quem quiser dar seguimento.]

sábado, 7 de fevereiro de 2009

sonho sobre a lama



voam baixo os pássaros
emissários de más novas
espalhando agoiros nas planícies devastadas
da alma

que importa se são poucos os homens
cujo olhar se lança em altitude
na senda dos azuis inantigíveis?

por cada um se planta um sonho
que floresce sobre a lama
por cada um se abre a porta
ao canto imprevisível da esperança


foto de Tiziano Bortoluzzi

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

insanidade



no tempo em que as pedras brilhavam
à transparência dos teus olhos de luar
achava no teu corpo abrigo eterno
escavado nas rochas onde nasci
e a tua voz era eco dos primeiros sons
no labirinto da memória


até que o sopro inesperado
do vento agreste dos teus passos
me arrastou em dor e sangue
e desatou o fio que me prendia
à ténue ilha da insanidade


foto de venedict cristina

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

o silêncio dos rios


não me digas de urbanos desertos
onde secam todos os poros
à superfície da pele
eu bebo o silêncio dos rios que se alongam
sem pressa
e sacio a fome no canto dos pássaros
no cristal frio de cada madrugada.


foto de Chuck Gordon