segunda-feira, 14 de setembro de 2009

à aventura

retiro-me de mim em parto inverso
num leito de mistos sentimentos
crescem raízes nos jardins da infância
palmilhando chão longo de saudades
teço-me agasalho em manta de retalhos
doçura de silêncio em linhas de água
por onde se espraia o tempo de amanhã
por ti sigo por mim caminho este passo
longo de ternura onde deito a alma
à aventura


foto de Giedrius Varnas

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

azul verde



rastejam animais sem forma
no declive viscoso da realidade
mudam de pele rasgando as entranhas
azuis verdes de sangue
deslizam em oníricas danças
no chão dos salões que construímos
dos restos destroçados de antigas casas
azuis verdes de ilusão

na barra oscilante entre o sono e o sonho
há rios secos
leitos áridos do nosso olhar de sempre
azul verde


foto de B Berenika

domingo, 16 de agosto de 2009

a montanha

o chão é agora uma amálgama de destroços. sangram os pés descalços. ardem os olhos abertos para os mundos que se degradam. que sabem os homens a quem não incomoda o ar fétido? surdos para a essência, nunca ouvirão o som da flauta. o inequívoco anúncio doutros céus que paira sobre a peste das cidades. escutarão apenas um incómodo zumbido. nunca farão o sacrifício do sangue sobre as pedras do solo. nunca subirão à montanha.


foto de Sam

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

dança das marés


hora incerta
o acordar dos dias
no balanço dos barcos à deriva
é excessiva a luz incongruente
o azul mar de cetim
lança fitas brancas no horizonte
inesperado início da dança das marés


foto de michal karcz

sábado, 1 de agosto de 2009

nem por fogo

nem por fogo nem por água te moveste
e o meu sono despertou sobre o teu rosto
sombra alada rente à pele em terno voo
por fogo não te rendeste
por água não me encontraste
sobre a terra é perene um trilho de asas
branca luz em cego fundo dos teus olhos
cru desejo de um sonho que perdeste


foto de joe zellers

domingo, 26 de julho de 2009

Rios dourados

Preguiçam barcos nos rios dourados como se as pontes existissem para sempre. Refazem-se horas de um tempo esquecido. Acreditamos ser nós, de novo, renascido corpo em invólucro azul. Rejeitamos os sinos que dizem notas dissonantes. Sabemos que voltarão a tocar quando a cidade nos embrulhar em dias sujos. Os invernos da alma dirão de nós mais que estes dias parados entre caminhos sem fim e muros brancos de sol reflectido. Levaremos lembranças vagas, diminutos refúgios de pequenas felicidades. A sobrevivência alimenta-se de efémeros reflexos de ouro.


foto de mariab

quinta-feira, 9 de julho de 2009

num dia estranho


num dia estranho
acordaram as folhas caídas
nos muros da cidade
onde escorre o inverno do teu medo
procuraste migalhas no avesso do corpo
restos de antigos banquetes
luzes sois vertigens de carrossel
todos os adornos do sonho
na mão aninhou-se a semente pequena
vinda do fundo de ti
gérmen plantado no frio do teu suor
no limite errante da cidade
aguardas a utópica planta
mãos abertas ao carinho da flor


foto de mariab


[a todos, boas férias!]

quarta-feira, 1 de julho de 2009

gavetas

acordo todos os dias virada para a cómoda castanha. quatro gavetas e puxadores dourados. não importa a data, a previsão meteorológica ou a minha vontade de começar o dia. à minha frente, a cómoda com puxadores já escuros, ouro a que o tempo retirou brilho. sei exactamente o que está dentro de cada gaveta. não acredito na possibilidade de algo me surpreender no espaço apertado de cada caixa rectangular. também sei qual a gaveta que vou abrir primeiro. ea que será a última. poderá acontecer algo de perverso se, um dia, mudar a ordem das gavetas. ou até a ordem pela qual as abro. poderá romper-se o equilíbrio precário do meu mundo de gavetas. posso acordar virada para uma parede branca ou uma janela rasgada. sem saber as consequências do meu acto de subversão, abro todos os dias as gavetas castanhas pela ordem certa.


mulher-gaveta, por Salvador Dali

quinta-feira, 25 de junho de 2009

naked eyes


romper a noite como se fosse fácil
transplantar o fogo no azul das veias
pôr giestas na lembrança do teu corpo
caminhar
pisar rastos tranquilos de esquecimento
correr no limite do mundo insuspeitado
esquecer
quanto dispo os olhos que desconheces.


foto de agatha katzensprung

domingo, 21 de junho de 2009

dor de olhos baços



doem-me as cidades de pedra em que as borboletas não poisam. o silêncio intacto sem ecos do zonzo canto de cigarras. o pó que não saiu do ventre da terra. dói-me a certeza das noites de lua perdida entre paredes imóveis. os gritos dos olhos baços peixes em aquário seco. dói-me este gemido da vida em cada músculo do corpo. faço-me ponte de rios inexistentes. para que eles sejam. para que eu possa ser.

foto de Vincenzo Basile

terça-feira, 16 de junho de 2009

senhora de muitos destinos



quero subir à torre e tocar o céu
dos deuses antigos
pairar imortal sobre a rota das águias
ser incerta e impetuosa como o vento
desmanchar a copa das árvores
e decidir o caminho das nuvens

ser senhora de muitos destinos
multiplicar vidas em voos sem fim
se não fora a certeza da queda
saber nas pedras a imagem de mim


Centum Cellas, foto de mariab

terça-feira, 9 de junho de 2009

caminhos prenhes de sinais


“porque o que te dou já era teu no início dos tempos. como uma dádiva de imortalidade.”

Fevereiro 2009



sob a máscara
nem uma palavra nova soa
quando os sonhos se semeiam
em terra escura
tudo o que te digo já foi dito
em outros tempos
quero-te os olhos fechados
desenha o tacto em caminhos
prenhes de sinais
esquinas contornos sabidos
um pássaro antigo nos olhos
sob a máscara


foto de ennio

sábado, 6 de junho de 2009

as nuvens são apenas água


as nuvens são apenas água. átomos que geram outros átomos dão calor ao sol. sólidos corpos ou o etéreo a que chamas alma são complexos mecanismos. dirás que é redutor. eu digo que o é, darmos a uma divindade o poder de vida ou morte. não queiras saber de mim nenhum indefinível perfume. reajo de acordo com as leis da física e da química. estas são as essências. não as que buscas para encontrares a tua.


foto de B Berenika

segunda-feira, 1 de junho de 2009

mirror, mirror on the wall


deve haver uma essência
sob as camadas sobrepostas
ou talvez quase nada
leve traço sem nexo ou propósito
um projecto um esboço
carvão negro em risco incerto
por cada máscara inventada
cada rosto desenhado
na imagem que o espelho oculta


foto de Klaus Kosak

quarta-feira, 27 de maio de 2009

sem transcendência


nos dias em que os pássaros não voam
o sol é um disco laranja
sem transcendência
prendemos olhares na cortina das águas
soltamos longos uivos de silêncio
adormecemos o dia
no sonho inútil da sombra de uma asa.


foto de Assunta

sábado, 23 de maio de 2009

cegueira


porquê tu, eu, as palavras a perderem-se em interstícios do real? porquê essa cegueira que te arrasta sem mercê pela margem do que pode ser a vida? nunca me viste. nunca. rasgo-me à tua frente. dizes: amo-te. como um cego de emoções. esvaziado do profundo conteúdo das palavras. da palavra. só tens que cortar os véus que tapam os olhos bem abertos. e as palavras voltarão ao seu dizer primordial. talvez então me vejas.


foto de Harrier

sábado, 16 de maio de 2009

ponto


nem a pomba que espreita lá fora sabe dizer os caminhos em que os pés sangram. imperfeitos, sempre. damos até a pele esfolada em troca do horizonte irreal a que chamamos felicidade. incompletos, diria. procurando utopias sem as quais somos vazios. vamos perdendo o fôlego na corrida para o inatingível. até um dia que julgamos sempre longínquo. o dia em que perdemos o fôlego. ponto.


foto de Adam Orzechowski

sexta-feira, 8 de maio de 2009

se falares hoje acredito



afogada
na deriva do rio espero o sinal
como flor breve à tona de água

se falares hoje acredito nas tuas palavras bóia
salvação encenada sem luz nem magia

foto de B Berenika

segunda-feira, 4 de maio de 2009

nos cantos do tempo


não fujo
nem digo as cascatas de palavras
que escuto nas esquinas da noite
não fujo, afirmo-te
leio as lembranças em olhos de pedra
no solo instável do inconsciente
não fujo, prometo
lanço raízes no solo que abandonas
planto e alimento o que será vida
nos cantos do tempo
para lá de nós


foto de AliceRouse

quinta-feira, 23 de abril de 2009

ecos



bandeira ou cravo em mãos quentes
de suor
guitarra que canta o sonho
num trinado
esquece a dor
aquele olhar bem longe
no horizonte vermelho de um dia
sobre as ruas conquistadas
por armas companheiras
de alegria
e tantas vozes que soam
num coro de acordar a vida

ecos trazidos pelo vento
brisa de gritos sobre o sono
na espera insana do recuar da lama
pelas margens do tempo

sábado, 18 de abril de 2009

este líquido corpo



Aqui está minha herança – este mar solitário
Que de um lado era amor e, do outro, esquecimento

Cecília Meireles, excerto de “Apresentação”


porque sou toda esta água
lançada entre altas terras continentes de ilusão
todo este líquido corpo
que se perde na voragem das margens da tua mão

quando secarem os rios que me alimentam a vida
ser-te-ei lembrança ausente – ponto fixo
luz perdida


foto de Chuck Gordon

terça-feira, 14 de abril de 2009

a água


a água, um fio sobre o lodo, esperando a maré. o céu, nuvem de algodão sujo. cenário de abandono onde um barco não é convite à evasão mas amarra à realidade. por ali deixei fúteis mágoas, amálgama sem préstimo na lama cinza. procurei o equilíbrio na madeira podre do cais. à espera do mar improvável.


foto de mariab - Carrasqueira

terça-feira, 7 de abril de 2009

versos de incerto rimar

algures neste planalto
alguém chora de abandono
um outro morre de fome
ou de doença já extinta
uma tristeza se espalha
uniforme indistinta
algures entre ti e mim
seca um dia a emoção
o bem-querer por crer tanto
que somos um mar sem fim
de desejo ou de tesão
como te parecer melhor
e quando nos damos conta
já alguém chora de dor

versos de incerto rimar
entre as vagas da paixão
e a doce maré de amar
que espalho de ponta a ponta


foto de Joannès Ceyrat

quinta-feira, 2 de abril de 2009

voaremos


voaremos por cima das rochas amarras que nos plantam no chão. o vento virá contra nós , remoinho de força cruel. toda a solidez será desfeita em terra. procuraremos então a essência dos sonhos perdidos. vasculharemos o pó para encontrar pequenos resíduos. vestígios do tempo em que não voávamos. e o vento não nos combatia. tentaremos talvez plantar de novo as rochas. na esperança de uma solidez perene.


foto de Ivan Krap

domingo, 29 de março de 2009

sem limites


somos cada instante, cada momento deste tempo indistinto. somos nós, os outros que fazem um desvio na nossa direcção e até os que passam sem ver. os que os olhos seguem, esperando um reconhecimento nunca concreto. ficam connosco, hipóteses sem seguimento. parte de nós. não te disse um dia que guardamos o bom e o mau? até o que não classificamos e nos perturba. em nós essa mescla se caldeia e se transforma. a vida, sabes, não se esgota na nossa fronteira. nunca a saberemos, se não nos dermos para lá dos limites. de todos os limites.


foto de Diana Freire

quarta-feira, 25 de março de 2009

abismo

entre rectângulo e rectângulo existe um abismo
que espreito pela fenda consentida do papel
e onde me despenho na procura da palavra
sucinta e necessária
tensa trave de equilíbrio entre mim e o reflexo
que os dias projectam sobre a minha sombra

entre rectângulo e rectângulo reside a essência
da alma exposta ao sopro da vida


foto de AliceRouse

sábado, 21 de março de 2009

estes tempos




Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Sophia de Mello Breyner Andresen, excerto de "Data"



levanto os olhos para lá dos muros
que se erguem
em cada dia espero a luz na hora certa

mostras-me lama e sei que a razão
reside em ti
dizem-me os céus prenhes de agoiros

pois sejam os meus dedos a clara fúria
de mil rios
de ti não aprendo a vida sem esperança!


foto de Nathan Thomas Jones

terça-feira, 17 de março de 2009

não acaba hoje o mundo

não acaba hoje o mundo. nem em nenhum outro dia em que o meu mundo acabe. percebes o que te digo? a vida é finita. e infinitamente perene. para lá das tão importantes minudências. dos enfados, dos cansaços, dos desalentos. não somos originais. ninguém é original. sabes quantos já disseram as frases com que (te) me arrasas? as palavras com que (me) te destruo? e, no entanto, diferentes. todos e cada um. na diferença, a vida floresce. e continua. não, meu amor, não acaba hoje o mundo.


foto de fritz fabert

sexta-feira, 13 de março de 2009

noviços



somos folhas nascidas nas árvores
aos raios primeiros do sol
saboreamos no balanço do vento
o apelo profundo da terra
bebemos a doçura das manhãs
gloriosamente ébrios de luz
a vida penetra-nos mais uma vez
noviços que somos na arte de renascer


foto de B Berenika
________________________________________


[Obrigada, Vicente]



[Obrigada, Tatiana. Os selos são para todos os que me dão o prazer e a alegria de me ler.]

domingo, 8 de março de 2009

no silêncio do útero


indizíveis, os mistérios nos olhos das mulheres. águas infindas na sua profundidade. trazem sombras espelhadas nas lágrimas que choraram. a luz mora no brilho do seu riso. porque os olhos das mulheres riem quando partilham mistérios. nunca todos, nunca. escondem-se segredos na sabedoria dos dias. das meninas. das velhas. de todas as que, no silêncio do útero, são promessa e vida. ou só lembrança que se desfaz em ternura.


foto de katarzyna Widmanska

terça-feira, 3 de março de 2009

das pontes sobre rios cinzentos


...mas se ainda queres falar de cidades
volto hoje aos recantos de outrora
colados na memória
aos mistérios de cada caminho
e das gentes que neles amaram
e viveram
e morreram
falo daqueles que teceram lendas
que te assombram as noites de néon
volto às pontes sobre rios cinzentos
às luzes antigas que nelas se acendem
talvez me encontres do lado de lá
se ainda quiseres falar de cidades…


foto de Tomasz Zubowski

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

princípio e fim


que novas me dás das cidades
onde a luz se pôs de madrugada?
o que me dizes das horas pardas
em que nos perdemos
para lá do portal da distância?

digo-te em verdade que a luz entrará
quando tudo não for mais que a cinza
despojada de nós
que o sopro insano do vento transporta
onde seremos para sempre princípio e fim
ancorados na orla do tempo


foto de hakim talbi

sábado, 21 de fevereiro de 2009

cascata da memória


I sing what was lost and dread what was won,
I walk in a battle fought over again,
My king a lost king, and lost soldiers my men;
Feet to the Rising and Setting may run,
They always beat on the same small stone.


W.B.Yeats, "What was lost"


nem sempre o momento é o de hoje
quando me perco no pó colado ao corpo
em cada derrota
a alma guarda todos os segundos gerados
no toque da pele na pele
cada riso solto no eco de outra voz


encontro outras de mim na cascata da memória
que lava a poeira dos despojos
e faço a viagem de volta à nascente
à alegria primeira do puro cristal de água

Foto de Jukka Vuokko

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

rescaldo (2)


este é o campo calcinado pelas chamas que ateaste. debaixo duma lua vermelha. cor de sangue e terra antes de semeada. fértil. pronta a dar fruto. aberta em sulcos de desejo. não este chão queimado que criaste debaixo dos pés. procuro mãos como águas dos rios. líquido corpo penetrando a terra. penhor de esperança derramada no amanhecer.


foto de Donnie Mackay

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

violino



como percorrer estas linhas tensas
que se estendem entre as mãos minhas tuas?
cordas de um violino de notas quebradas
que busca o equilíbrio em longos silêncios

como fazer de todo o ruído sinfonia
e dos sons bálsamo sobre a pele gretada?
se em arco soltas os ais do meu corpo
rouco eco vibrando em cada precipício

como tocar esta fuga em solo
se o violino guarda a memória do som?


foto de Katarzyna Widmanska

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Desafio


“E veio-lhe então a ideia de que seria injuriar a mulher recusar esta oferenda, recusar esta terna atenção”

Milan Kundera, in "O livro dos amores risíveis”, Publicações Dom Quixote, pag. 161

porque o que te dou já era teu no início dos tempos. como uma dádiva de imortalidade. magma que tem que explodir e eternizar-se, sólido. a recusa é o arrancar das raízes, o destruir das origens. aceita o que te está destinado.


foto de Fritz Fabert

[resposta ao desafio do PAS[Ç]SOS com um pequeno acrescento meu. fica para quem quiser dar seguimento.]

sábado, 7 de fevereiro de 2009

sonho sobre a lama



voam baixo os pássaros
emissários de más novas
espalhando agoiros nas planícies devastadas
da alma

que importa se são poucos os homens
cujo olhar se lança em altitude
na senda dos azuis inantigíveis?

por cada um se planta um sonho
que floresce sobre a lama
por cada um se abre a porta
ao canto imprevisível da esperança


foto de Tiziano Bortoluzzi

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

insanidade



no tempo em que as pedras brilhavam
à transparência dos teus olhos de luar
achava no teu corpo abrigo eterno
escavado nas rochas onde nasci
e a tua voz era eco dos primeiros sons
no labirinto da memória


até que o sopro inesperado
do vento agreste dos teus passos
me arrastou em dor e sangue
e desatou o fio que me prendia
à ténue ilha da insanidade


foto de venedict cristina

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

o silêncio dos rios


não me digas de urbanos desertos
onde secam todos os poros
à superfície da pele
eu bebo o silêncio dos rios que se alongam
sem pressa
e sacio a fome no canto dos pássaros
no cristal frio de cada madrugada.


foto de Chuck Gordon

sábado, 31 de janeiro de 2009

baptismo



vi a minha face no espelho de água
reflexo de mil máscaras
                                  sobrepostas no tempo
dos ombros foram caindo
                                  uma a uma
capas que se perderam
em caminhos de fragas

na procura do corpo inicial
do rosto puro
primevo
despi-me de mim
e da concha da tua mão
bebi a água do meu baptismo




foto de Marcin Klepacki

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

e dele as folhas...


não é este o tempo de tentar ver para além da árvore. concentro-me no verde que tapa o horizonte. na gota de chuva que pende da folha. não é este o tempo de voar para lá da árvore. as asas estão presas à terra por fios leves, leves… pensei que podia quebrá-los. têm a firmeza do pensamento. só se quebrarão quando se dissolverem no húmus antigo. dele brotará um novo tronco de mim. e dele as folhas. e dele a libertação das asas. para lá da árvore.


foto de Darius Klimczack


----------------------------------------



[Agradeço a amizade e a gentileza da Hercília Fernandes. Este prémio é para todos os amigos que me visitam. Obrigada.]

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

sabes?



partirei. devagar. sabes que será devagar. a bagagem ficará solta na água. levarei comigo apenas suor e sémen. pele minha que nenhum rio lava. ficarão lembranças fluidas nas pedras. lentas. até que, não me sentindo no tacto, deixarás de ver. será um dia. sem nada de diferente. um destes dias. assumo que me dissolverei na fronteira do invisível. partirei. devagar. sabes?


foto de Marek Waskiel

sábado, 24 de janeiro de 2009

por trás da bruma



algures por trás da bruma
dos prédios esventrados
das gentes que a alma não sente

perdi-te
ou perdi de ti o saber
                          o sabor
não encontro o caminho do teu ser
e nem o dos teus olhos
via aberta e estrada principal

perdi-me
por entre escombros
um mar de lixo à deriva
sentimentos quebrados
                          esfarrapados sentidos

nos becos além da bruma
perdi-me de ti.


foto de Claudio Naboni

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

espelhos do mar



não há unidade nos espelhos do mar
onde as sombras são longas
como dias

desdobro-me em vagos sonhos por abrir
procuro no colo das ondas
a tua face
                          minha cortante amarra
                          vértice de alguma estrela caída


foto de donnie mackay

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

chocolate e baunilha


amanhã é uma palavra redonda
com sabor a chocolate
desfaz-se na boca escorrendo
                              expectativas de prazer
                                                            até à explosão na língua


bebo-te a palavra em beijos de baunilha
antecipo a fome redonda de amanhã



foto de Zbyszek Filipiak

domingo, 18 de janeiro de 2009

o gato




no sofá às riscas está o gato
plácido e controverso
no verde oblíquo dos olhos
esconde a porta de um mundo absurdo
de amáveis gigantes e pequenas criaturas
improváveis

um dia serei gato num sofá às riscas
olhando por uma pequena fresta
as dúvidas que escorrem da mão que me afaga


foto de Piotr Rymer


_______________




[Obrigada, Arabica, e perdoem-me se não consigo distinguir entre todos os que me honram por aqui passarem ]